Dano em Ricochete – Conheça seus reflexos no Código Civil

19/03/2018
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18/09/2020
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6 minutos

Teoria do Dano em Ricochete e reflexos no Código Civil

A Teoria do Dano em Ricochete nos mostra que a lesão deve ser reparada ao terceiro que se torna vítima (por ricochete) da ofensa.

Os direitos da personalidade são consagrados de forma tão árdua, em nosso ordenamento jurídico, que aparecem logo nas primeiras linhas de nossa Constituição Federal, resumidos no princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF). Não suficiente, esses direitos são resguardados um pouco mais à frente, no Art. 5º da Constituição. É ali, desse modo, que temos a proteção, verbi gratia, da livre manifestação do pensamento, liberdade de crença, liberdade intelectual, artística e de comunicação e, não menos importante, inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas.

Não acaba por aí. Nosso Direito brasileiro é tão cuidadoso com os direitos da personalidade que há um capítulo só para eles no Código Civil. É justamente esse capítulo que abriga o reconhecimento dos direitos da personalidade do morto.

dano em ricochete

Direitos da personalidade no Código Civil

Vamos por partes, então. O art. 6º do Código Civil nos diz que a existência da pessoa natural acaba com a morte. Portanto, sua personalidade também cessa. Contudo, como costuma dizer Tartuce1, após a morte da pessoa, ficam resquícios de sua personalidade, que podem ser tutelados por estes citados nos arts. 12 e 20 do Código Civil:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Em análise aos artigos, é possível concluir que, diferentemente do que apontam alguns doutrinadores (a exemplo de Pontes de Miranda, que acreditava que a morte tudo resolve – mors omnia solvit), a regra de que a personalidade cessa com a morte é relativa. Defendem essa corrente Álvaro Villaça, Rubens Limongi França, Gustavo Tepedino, Flávio Tartuce e Paulo Lôbo, corrente essa que me parece mais acertada.

Teoria do Dano em Ricochete

A Teoria do Dano em Ricochete foi introduzida na França a partir do século XIX (préjudice d’affection) e, de maneira diferenciada no BGB alemão, quando aplicada em casos comprovados de choque nervoso (Schockschaden). Ela nos mostra que a lesão deve ser reparada ao terceiro que se torna vítima (por ricochete) da ofensa, caso o atinja em situações que ofendam a pessoa morta.

Frisa-se que nesses casos analisados a ofensa é dirigida ao morto, mas quem reclama perdas e danos são os lesados indiretos. No caso do art. 12 do CC, os legitimados são cônjuge ou qualquer parente em linha reta (ascendente ou descendente) ou colateral até o quarto grau. Já no art. 20 do CC, o rol diminui: são legitimados o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Aqui, vale mencionar o Enunciado n. 275 do CJF/STJ, da IV Jornada de Direito Civil, que inclui também o companheiro como legitimado em ambos os artigos.

Tutela dos art. 12 e do art. 20, CC/2002

Por tudo o que já foi dito até agora, então, o quadro esquemático sobre o dano em ricochete esclarece:

Art. 12, CCArt. 20, CC
Reclamar perdas e danos pela lesão aos direitos da personalidade do mortoReclamar perdas e danos pela lesão à divulgação de escritos, transmissão ou publicação da palavra, exposição ou utilização da imagem
Legitimados: ascendente, descendente, colaterais até o quarto grau, cônjuge e companheiroLegitimados: ascendente, descendente, cônjuge e companheiro

Jurisprudência sobre o dano em ricochete

É interessante, então, trazer uma análise de jurisprudência do dano em ricochete para verificação de sua aplicabilidade no judiciário brasileiro.

Caso Garrincha

Importante case sobre o dano em ricochete é o julgado relativo à biografia do jogador Garrincha, em que se tutelaram os direitos da filha do jogador em decorrência de afirmações feitas na publicação:

CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto.

Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido2. (grifamos)

Caso Zeca Camargo e Cristiano Araújo

Outro recente caso sobre o dano em ricochete é o de Zeca Camargo. O caso envolve, assim, ofensa em crônica publicada pelo jornalista direcionada ao cantor sertanejo Cristiano Araújo, falecido em 2015. Na demanda, Zeca Camargo foi, então, condenado a pagar indenização ao pai do cantor. A sentença de primeiro grau condenou o apresentador e jornalista a pagar R$ 30.000,00 a cada um dos Autores. Figura, no polo ativo da demanda, além do pai, a empresa que gerenciava o cantor sertanejo. Aqui, peço licença para abrir espaço a um entendimento pessoal: creio ser indevida a condenação de Zeca ao pagamento de indenização à empresa, já que, como mostramos, não poderia ela figurar como legitimada, com base nos arts. 12 e 20 do CC.

Apesar disso, o TJ/GO decidiu, em recurso de apelação, pela legitimidade do polo ativo da demanda. Desse modo, integra o acórdão:

Saliento que legítimos os autores para figurarem no polo ativo da demanda, tendo em vista que com a morte da vítima, o direito de indenização por danos morais passa para os interessados na imagem do falecido, como no caso da empresa responsável pela carreira artística do cantor Cristiano Araújo e o pai do mesmo³.

Assim, nota-se que o entendimento pátrio sobre o dano em ricochete é forte ao defender os direitos da personalidade, ainda que a vítima da ofensa tenha falecido. Isso comprova que, ainda que mitigados, os direitos da personalidade são objetos de profunda preocupação dos Tribunais brasileiros.

Referências

  1. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – 8. ed. rev, atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 117-118
  2. STJ, 4ª Turma, REsp 521697 RJ 2003/0053354-3, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 16/02/2006, publicado em 20/03/2006.
  3. STJ, 6ª Câmara Cível, ACi 0258571-73.2015.8.09.0051 , Rel. Sandra Regina Teodoro Reis, julgado em 05/09/2018, publicado em 05/09/2018.

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Dano em Ricochete – Conheça seus reflexos no Código Civil

19/03/2018
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13/10/2022
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Teoria do Dano em Ricochete e reflexos no Código Civil

A Teoria do Dano em Ricochete nos mostra que a lesão deve ser reparada ao terceiro que se torna vítima (por ricochete) da ofensa.

Os direitos da personalidade são consagrados de forma tão árdua, em nosso ordenamento jurídico, que aparecem logo nas primeiras linhas de nossa Constituição Federal, resumidos no princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF). Não suficiente, esses direitos são resguardados um pouco mais à frente, no Art. 5º da Constituição. É ali, desse modo, que temos a proteção, verbi gratia, da livre manifestação do pensamento, liberdade de crença, liberdade intelectual, artística e de comunicação e, não menos importante, inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas.

Não acaba por aí. Nosso Direito brasileiro é tão cuidadoso com os direitos da personalidade que há um capítulo só para eles no Código Civil. É justamente esse capítulo que abriga o reconhecimento dos direitos da personalidade do morto.

dano em ricochete

Direitos da personalidade no Código Civil

Vamos por partes, então. O art. 6º do Código Civil nos diz que a existência da pessoa natural acaba com a morte. Portanto, sua personalidade também cessa. Contudo, como costuma dizer Tartuce1, após a morte da pessoa, ficam resquícios de sua personalidade, que podem ser tutelados por estes citados nos arts. 12 e 20 do Código Civil:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Em análise aos artigos, é possível concluir que, diferentemente do que apontam alguns doutrinadores (a exemplo de Pontes de Miranda, que acreditava que a morte tudo resolve – mors omnia solvit), a regra de que a personalidade cessa com a morte é relativa. Defendem essa corrente Álvaro Villaça, Rubens Limongi França, Gustavo Tepedino, Flávio Tartuce e Paulo Lôbo, corrente essa que me parece mais acertada.

Teoria do Dano em Ricochete

A Teoria do Dano em Ricochete foi introduzida na França a partir do século XIX (préjudice d’affection) e, de maneira diferenciada no BGB alemão, quando aplicada em casos comprovados de choque nervoso (Schockschaden). Ela nos mostra que a lesão deve ser reparada ao terceiro que se torna vítima (por ricochete) da ofensa, caso o atinja em situações que ofendam a pessoa morta.

Frisa-se que nesses casos analisados a ofensa é dirigida ao morto, mas quem reclama perdas e danos são os lesados indiretos. No caso do art. 12 do CC, os legitimados são cônjuge ou qualquer parente em linha reta (ascendente ou descendente) ou colateral até o quarto grau. Já no art. 20 do CC, o rol diminui: são legitimados o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Aqui, vale mencionar o Enunciado n. 275 do CJF/STJ, da IV Jornada de Direito Civil, que inclui também o companheiro como legitimado em ambos os artigos.

Tutela dos art. 12 e do art. 20, CC/2002

Por tudo o que já foi dito até agora, então, o quadro esquemático sobre o dano em ricochete esclarece:

Art. 12, CCArt. 20, CC
Reclamar perdas e danos pela lesão aos direitos da personalidade do mortoReclamar perdas e danos pela lesão à divulgação de escritos, transmissão ou publicação da palavra, exposição ou utilização da imagem
Legitimados: ascendente, descendente, colaterais até o quarto grau, cônjuge e companheiroLegitimados: ascendente, descendente, cônjuge e companheiro

Jurisprudência sobre o dano em ricochete

É interessante, então, trazer uma análise de jurisprudência do dano em ricochete para verificação de sua aplicabilidade no judiciário brasileiro.

Caso Garrincha

Importante case sobre o dano em ricochete é o julgado relativo à biografia do jogador Garrincha, em que se tutelaram os direitos da filha do jogador em decorrência de afirmações feitas na publicação:

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CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto.

Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido2. (grifamos)

Caso Zeca Camargo e Cristiano Araújo

Outro recente caso sobre o dano em ricochete é o de Zeca Camargo. O caso envolve, assim, ofensa em crônica publicada pelo jornalista direcionada ao cantor sertanejo Cristiano Araújo, falecido em 2015. Na demanda, Zeca Camargo foi, então, condenado a pagar indenização ao pai do cantor. A sentença de primeiro grau condenou o apresentador e jornalista a pagar R$ 30.000,00 a cada um dos Autores. Figura, no polo ativo da demanda, além do pai, a empresa que gerenciava o cantor sertanejo. Aqui, peço licença para abrir espaço a um entendimento pessoal: creio ser indevida a condenação de Zeca ao pagamento de indenização à empresa, já que, como mostramos, não poderia ela figurar como legitimada, com base nos arts. 12 e 20 do CC.

Apesar disso, o TJ/GO decidiu, em recurso de apelação, pela legitimidade do polo ativo da demanda. Desse modo, integra o acórdão:

Saliento que legítimos os autores para figurarem no polo ativo da demanda, tendo em vista que com a morte da vítima, o direito de indenização por danos morais passa para os interessados na imagem do falecido, como no caso da empresa responsável pela carreira artística do cantor Cristiano Araújo e o pai do mesmo³.

Assim, nota-se que o entendimento pátrio sobre o dano em ricochete é forte ao defender os direitos da personalidade, ainda que a vítima da ofensa tenha falecido. Isso comprova que, ainda que mitigados, os direitos da personalidade são objetos de profunda preocupação dos Tribunais brasileiros.

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Referências

  1. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – 8. ed. rev, atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 117-118
  2. STJ, 4ª Turma, REsp 521697 RJ 2003/0053354-3, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 16/02/2006, publicado em 20/03/2006.
  3. STJ, 6ª Câmara Cível, ACi 0258571-73.2015.8.09.0051 , Rel. Sandra Regina Teodoro Reis, julgado em 05/09/2018, publicado em 05/09/2018.

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