Conflito de competência do Netflix: qual imposto e quem deve cobrar?

29/11/2018
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28/03/2023
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14 minutos

A Netflix é uma empresa americana criada em 1997 na Califórnia, onde está localizada a sua sede mundial. Era, inicialmente, um serviço de locação de filmes, que passou a oferecer assinatura de locação ilimitada de DVD’s por um preço mensal. Esse foi o início de uma grande ideia que, mais adiante, passou a se valer da internet para ampliar seu público. Esse salto deu-se em 2007, quando a Netflix iniciou o serviço de transmissão online, o qual permite aos assinantes assistir a séries e filmes instantaneamente no computador. Tal serviço de streaming chegou ao Brasil em setembro de 2011 com a Netflix se instalando fisicamente na Grande São Paulo. Começa aí também, no entanto, uma batalha a respeito do conflito de competência que envolve a empresa e os Estados e Municípios.

A questão é a seguinte. Seduzidos pela popularidade da Netflix, os entes federativos passaram a buscar a competência e a capacidade tributária a seu próprio modo para regulamentar a incidência de tributos sob os serviços de streaming. Com isso, foram criados instrumentos normativos para viabilizar a cobrança dessa atividade por meio do ICMS (tributo responsável pela incidência em serviços de telecomunicações) e do ISS (imposto criado para onerar serviços em si, com incidência limitada pela lista taxativa trazida pela Lei Complementar 116/2003). No entanto, isso acabou por gerar problemas de conflito de competência. E deu início também a diversas discussões acerca da legalidade e constitucionalidade da incidência desses impostos sobre o streaming. 

Sugiram, então, legislações diferentes em cada ente federativo para justificar a tributação. É o caso, por exemplo, do Convênio ICMS 106/2017 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) e da Lei Complementar nº 157/2016 que instituiu o ISS.

Mas, afinal, qual ente possui a competência para incidir esse imposto?

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O conceito de competência tributária

Para entender o conflito de competência envolvendo o Netflix é preciso verificar primeiro o conceito de competência tributária. Competência tributária indica a titularidade plena que determinado ente federativo possui sobre alguns tributos. Assim, a titularidade sobre a coisa fiscal é reflexo da autonomia conferida a cada integrante da federação. Seria quase como uma herança do poder constituinte.

No que tange à delimitação da competência tributária, os princípios federativo e da autonomia municipal e distrital possuem reclamo impostergável. Para Roque Carraza (2015, p. 593-595),

Competência tributária é a possibilidade jurídica de criar tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas. Assim, exercitar a competência tributária é dar nascimento, no plano abstrato, a tributos. Por aí se vê que, num primeiro momento, a competência tributária traduz-se numa autorização constitucional para criar in abstracto prestações pecuniárias compulsórias. É exercitada in concreto num segundo momento, ou seja, quando a pessoa política que a detém expede a lei que aponta os precitados elementos essenciais do tributo.

Importante ressaltar que a competência tributária se exaure na lei. Assim, uma vez editada, a competência tributária cede espaço à capacidade tributária ativa que consiste na fiscalização e arrecadação. Conclui-se, então, que a competência tributária não ultrapassa os limites do Poder Legislativo. Pelo contrário. Finda-se com a edição da lei detentora da norma jurídica tributária.

Portanto, tal delimitação na lei não cedeu espaço para conflito de competência no tocante aos serviços de valor adicionado. Uma vez atribuída aos Estados a competência para tributar os serviços de telecomunicação, exclui-se a possibilidade de atuação fiscal dos Municípios. Assim, antes de se definir qual imposto incidirá na prestação de serviços de valor adicionado, faz-se necessário que analisar minuciosamente cada um deles para determinar o alcance do fato gerador.

Conflito de competência: o ICMS

É sabido que a definição do fato gerador dos impostos deve ser dada por meio de lei complementar (art. 146, III, a, CF). Nesse contexto, a responsabilidade pelas normas gerais do ICMS é a Lei Kandir, ou Lei Complementar 87/1996. O art. 2º preleciona:

Art. 2° O imposto incide sobre:

I – operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares;

II – prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;

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III – prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;

IV – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios; V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

§ 1º O imposto incide também:

I – sobre a entrada de mercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade;

II – sobre o serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior;

III – sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente.

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Além disso, o §2º estabelece que a caracterização do fato gerador independe da natureza jurídica da operação que o constitua. Assim, tão importante quanto determinar sua incidência é especificar sua não incidência. Isso está expresso no art. 3º.

Hipóteses no caso concreto

Dessa maneira, nota-se que a mera disposição legal, por si só, não é capaz de sanar a dúvida aqui proposta. Faz-se necessário, portanto, uma análise pormenorizada do que foi exposto. Pode-se afirmar, assim, que a incidência do ICMS está baseada em três hipóteses:

  • circulação de mercadorias;
  • prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal;
  • prestação de serviço de comunicação.

Para fins de uma análise mais efetiva aliada ao streaming e ao conflito de competência, vamos delimitar o estudo na prestação de serviço de comunicação.

Em primeiro lugar, é preciso atentar-se à natureza do serviço prestado. Caso a finalidade seja a transmissão de mensagens (emissão ou recepção), haverá incidência do ICMS. Mas se não for o caso, os Tribunais Superiores já pacificaram o entendimento de que não haverá cobrança de ICMS. Isso está refletido no REsp 1.176.753/RJ.

Conflito de competência: o ISS

Para a Constituição, o ISS, que regula todos os tipos de serviços, está submetido à competência municipal e distrital. A exceção é justamente o ICMS, que está designados à competência estadual.

Dessa forma, serviços de qualquer natureza poderão ser tributados pelo Município, desde que estabelecidos por lei ordinária. Assim, os mais de 5,5 mil municípios brasileiros devem editar suas leis ordinárias para instituir o ISS, em conformidade com a Lei Complementar nº. 116/2003. De âmbito nacional, tal legislação é responsável por disciplinar normas gerais definidoras do fato gerador, base de cálculo e contribuintes.

Importante dizer que esse imposto tem caráter nitidamente fiscal, mostrando-se de grande importância para a atividade financeira dos Municípios. Além disso, também está sujeito aos princípios constitucionais de regulação tributária. É o caso, por exemplo, do princípio da legalidade e do princípio da anterioridade (comum e nonagesimal).

Por fim, ressalta-se que esse imposto, via de regra, é recolhido no município em que se encontra o estabelecimento do prestador. Ou então, na falta dele, no local do domicílio do prestador. A exceção são as hipóteses previstas nos itens I a XXII do art. 3º, da LC 116.

INSS: a materialidade

Por outro lado, a materialidade do ISS está definida no art. 1 da referida norma. Diz ela:

Art. 1º O Imposto sobre serviços de qualquer natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.

§ 1º O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País.

§2º Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.

§ 3º O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.

§4º A incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado.

Como se vê, é facultado ao Município a escolha de tributar os serviços previstos na lista de serviços anexa à legislação. É vedada, entretanto, a criação de novos serviços. Ou seja: é defeso o ato de extrapolar os limites impostos pela lei, sob pena de inconstitucionalidade. Isso porque a Constituição Federal atribui aos Municípios a competência de tributar somente serviços definidos por lei complementar.

ISS: a não incidência

Assim, os serviços que não são considerados fato gerador do ISS são, conforme Eduardo Sabbag:

  • a prestação de serviço a si próprio;
  • prestação de serviço decorrente de vínculo empregatício;
  • a prestação de serviço por prestadores de trabalho avulso e por sócios ou administradores de sociedade;
  • a prestação de serviços para o exterior (isenção heterônoma);
  • prestação de serviços pelo próprio Poder Público (imunidade tributária);
  • a prestação de serviço público específico e divisível, com utilização efetiva ou potencial, por se tratar de campo de incidência das taxas de serviço;
  • prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (campo de incidência do ICMS).

Sobre esse último, relacionado à competência estadual, Ricardo Lobo Torres (apud SABBAG, 2014, p. 1070) elucida:

O ISS é um imposto residual. Incide sobre os serviços que não estejam essencial e indissoluvelmente ligados à circulação de mercadorias, à produção industrial, à circulação de crédito, moeda estrangeira e títulos mobiliários, pois em todos esses fatos econômicos há parcela de trabalho humano. Em outras palavras, incide sobre os fatos geradores não incluídos na órbita dos outros impostos sobre a produção e circulação de riquezas (IPI, ICMS, IOF) e por essa extrema complexidade carece de enumeração taxativa na lei complementar.

Dessa forma, fica evidente que tais hipóteses não se sujeitam à força normativa da LC 116. Isso porque não se encontram previstas como potencial hipótese de incidência capaz de ensejar a cobrança de ISS.

ICMS x ISS: de quem é a competência?

Findada a exposição apartada das peculiaridades dos impostos, cumpre esclarecer qual das opções seria mais viável ao caso em questão: o conflito de competência envolvendo o Netflix. Como visto, por se tratar de comunicação e de serviço, o streaming poderia ensejar o ICMS e também o ISS.

No entanto, esclarece Moreira (2016) que a adequação de atividade ao contexto dos serviços de valor adicionado é meramente didática. Isso porque, para aferir a subsunção da atividade à hipótese de incidência do ICMS, basta verificar se há ou não prestação de serviço de comunicação. Dessa forma, considerando o art. 3º da Resolução n.º 73/1998 cumulado com o art. 61 da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), o serviço de valor adicionado não se confunde com serviço de telecomunicação, embora esteja diretamente ligado a ele. Isso afasta, portanto, a incidência de ICMS.

Já sobre o ISS, os serviços tributáveis devem constar na legislação que regula o imposto (LC 116). É nesse contexto que surge o projeto de lei n.º 366/2013, que insere a hipótese de incidência relativa ao Serviço de Valor Agregado (SVA).

Alternativa legislativa de tributação

Sobre essa alternativa legislativa de tributação, ensina Moreira (2016, p. 327-328) que devem ser respeitadas algumas premissas.

A primeira consideração que se deve fazer acerca da incidência do ISSQN sobre os SVAs é que, na maioria das vezes, tais serviços não são prestados pelas operadoras de telefonia. Estas se limitam a fornecer a rede de telecomunicações para que os serviços sejam prestados por um terceiro e a efetuar a cobrança dos mesmos na conta telefônica, repassando posteriormente os valores ao efetivo 31 prestador.

Isso significa que o contribuinte do imposto será, tão somente, o prestador do serviço. Não pode, portanto, ser responsabilizada a empresa de telecomunicação. Assim, o sujeito passivo da relação tributária firmada com o Fisco municipal será o prestador do serviço de valor adicionado. A exceção é a existência de lei que atribua responsabilidade a terceiro relacionado ao fato gerador. Tal determinação está no art. 128, do Código Tributário Nacional (CTN).

Assim, ficam claro os motivos de se afastar o ICMS (por ausência de prestação de serviço de comunicação) em detrimento da incidência de ISS prestação de serviço que, em breve, constará no rol taxativo da LC 116. Alguns estudiosos do direito defendem que a cobrança de ISS, nesse caso, seria inconstitucional. Eles entendem, por exemplo, que a prestação ofertada pela Netflix não se trata de serviço. E isso descaracterizaria a hipótese de incidência do referido imposto.

E no caso do Netflix?

O raciocínio elaborado é o de que a Netflix não se sujeita a uma obrigação de fazer. Ela apenas disponibiliza conteúdo alocado em certo servidor para seus assinantes. Isso, portanto, incorreria na hipótese elencada pela Súmula Vinculante n.º 31, do STF:

É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.

Em defesa desse posicionamento, Bruno Barchi Muniz enxerga tal prestação de serviços como mera locação de conteúdo multimídia. Isso, portanto, acarretaria em uma inconstitucionalidade da cobrança de ISS. Por outro lado, Thiago Mattos Marques (2015) explica que:

Embora sob a perspectiva econômica fique caracterizada a manifestação de capacidade contributiva nas atividades remuneradas desenvolvidas por aplicativos como o Netflix — o que justifica a tributação do lucro da empresa pelo IRPJ/CSLL e a tributação das receitas auferidas pelo PIS/Cofins —, ao simplesmente indicar a tributação pelo ISS o Congresso pretende autorizar uma cobrança de imposto sem que a atividade desenvolvida e contemplada na nova norma guarde conexão com a competência tributária atribuída pela Constituição aos municípios, que são autorizados a cobrar o ISS especificamente sobre a prestação de serviços.

Acredita, portanto, que a aprovação de tributação da Netflix por ISS seria contrária à competência constitucionalmente fixada.

Conclusão

Apesar de interessante, esse não é o entendimento que aqui se adota. Isso porque a análise nos remete à prestação de um serviço que se preocupa em disponibilizar conteúdo acessível a qualquer tempo e em qualquer lugar, desde que se adquira, onerosamente, o acesso. A locação de bem móvel, ao contrário, limita a disponibilização do conteúdo alugado, visto que pressupõe termo (evento futuro e certo) que põe fim ao que foi pactuado. Nesse liame, afasta-se a analogia e ratifica-se a possibilidade de incidência de ISS.

No entanto, como se percebe, o caso é inconclusivo. Tudo indica que a tributação sobre a tecnologia de streaming e também o conflito de competência gerado a partir disso serão definidos pelo Poder Judiciário. Não há, portanto, como saber se as normas editadas pelos estados e municípios são consideradas ilegais ou inconstitucionais. Assim, o caminho mais seguro para o contribuinte é se resguardar. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio da propositura de ações judiciais. Desta forma, o usuário pode evitar o surgimento de um passivo tributário perante os entes da federação.

Marília Gabriela de Souza Barbosa é advogada e pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Também é membro do núcleo de Direito Tributário do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).

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