Existem regras morais absolutas? A ética na contemporaneidade

18/01/2019
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30/03/2023
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13 minutos

As questões morais acompanham o pensamento humano desde sempre. Isto porque elas se referem à forma de agir do indivíduo, seja de forma particular ou coletiva. Diante desta tamanha importância, o agir foi objeto de vários questionamentos. Buscaram-se, então, respostas para as ações humanas frente ao comportamento moral, no âmbito particular, em relação aos seus pares, mas também na vida em sociedade. Desse modo, traz-se a pergunta: existem regras morais absolutas?

O presente trabalho será abordado dentro da perspectiva kantiana em relação aos imperativos categóricos como sendo regras morais absolutas. Contudo, também trará seus contra pontos, com a citação sucinta de outras teorias que tratam o referido tema em outras perspectivas.

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A racionalidade e a ética em Kant

Kant, em suas várias obras, trouxe uma visão da ética ou do agir, como sendo racional. Esta vinha, assim, na forma de um dever, dado através do conhecimento de uma racionalidade apriorística, como em si mesma, resultado de uma atividade intelectiva.

Kant, também, compreendia haver um livre arbítrio. Sendo o homem um ser livre racional, este é capaz de tomar suas próprias decisões de forma individual. Ou seja, sem levar em conta apenas os resultados da persecução das regras morais, mas também as causas que o motivaram.

Dessa forma, fica claro que a ética Kantiana tem caráter deontológico, pois é orientada pelo dever racional. E este, assim, tem como objeto promover a intermediação entre o sensível e o racional.

Para Kant, portanto, o homem vive em constante “batalha” entre os apetites do desejo, guiados por sua sensibilidade e a vontade de sua razão.

Universalidade das leis e o dever por si

Foi, então, na universalidade existente no imperativo categórico proposto por Kant, onde se concebeu que cada um seria o seu próprio legislador interno. Consequentemente, teriam ações conduzidas por uma vontade autônoma, racional e livre de coerções externas.

Assim a lei moral “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” exige respeito absoluto ao dever no cumprimento de certas normas fundamentais como não matar, não roubar e não mentir. A palavra imperativo designa, então, dever, ordem, obrigação. Enquanto isso, a palavra categórico designa absoluto, incondicional.

Desta forma, Kant defende, que, para agirmos de forma moral, devemos respeitar de forma incondicional um conjunto de algumas regras morais, sem exceções. De igual modo, sempre devemos perguntar se a ação pode ser aplicada de forma universal. Ou seja, a todos os casos.

O dever absoluto em Kant

Respeitar a lei moral ou o que ela ordena é, enfim, uma obrigação absoluta. O que a lei moral ordena cumprir é o dever por puro e simples respeito a este. Para Kant, esta é uma exigência que tem a forma de um imperativo categórico. De tal forma, para que uma ação seja boa, deve ser realizada pelo seu valor intrínseco, que seja querida por si mesma. Não pode ser realizada, portanto, pela sua finalidade. Agir por dever, assim, é a única razão de ser da ação.

Kant pensava que a exigência de praticar apenas ações cujas máximas pudessem ser universalizadas garantia que as regras morais fossem absolutas. Ao invés de se deixar o sujeito ajuizar de acordo com a sua situação particular, uma forma universal deveria sobrepor a todo o contexto. Ou seja, caberia ao sujeito deliberar como se estivesse a legislar universalmente. Isto quer dizer, para qualquer sujeito que se encontrasse em semelhante situação.

Então para Kant, as consequências de uma ação não têm qualquer relevância para determinar o valor moral dessa ação, quer essas consequências sejam boas ou más, uma vez que o valor moral de uma ação é determinado pela intenção do agente.

Assim uma ação com valor moral poderia ter boas consequências mas não são as boas consequências que a tornam moralmente valiosa, citando como exemplo no presente trabalho o dever de não mentir dado por Kant, sendo que para o mesmo não devemos mentir em qualquer situação. Mas e se for preciso mentir para salvar a vida de alguém? Ou mesmo nos casos em que se incorre em uma excludente de culpabilidade?

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Para Kant não haveria exceções, pois suas regras morais são absolutas. Vejamos, então, seus contra pontos.

Crítica utilitarista às regras morais absolutas

Pegando-se este exemplo, com a regra do dever de não mentir, seja em toda e qualquer situação, existem outros movimentos filosóficos que também abordam a ação ética e as regras morais. É o caso, por exemplo, o utilitarismo que, de forma sucinta, tem por objeto ação ética em conformidade com o alcance da máxima felicidade.

Segundo as teorias utilitaristas, as regras morais não decorrem de uma abstração com resultados universais e deveres absolutos. Pelo contrário, a ética se dá quanto maior a quantidade de pessoas beneficiadas com uma ação ou maior o grau de felicidade dela originado. Retomando o caso hipotético, portanto, mentir não necessariamente seria uma violação ás regras morais. Se a mentira, por exemplo, pudesse salvar alguém, implicaria em maior felicidade do que não mentir. Isto porque a verdade teria como consequência a morte do indivíduo.

Kant, contudo, não introduz, em sua teoria moral, mecanismo algum que considere a necessidade de decidir entre regras equivalentes. No presente caso, como se observa, existe um sopesamento de valores, muito semelhante ao que ocorre nos conflitos entre princípios. E assim, pode-se inferir que a nossa intuição moral considera salvar uma vida como um valor moral superior ao valor moral de não mentir.

Assim uma crítica feita à moral kantiana é a de que não podemos quebrar promessas. Não podemos, então, mentir ou cometer suicídio. Contudo, a moral kantiana não nos dá nenhuma indicação do que devemos fazer. Tampouco nos indica quais seriam as finalidades a serem buscadas em sua ética.

Há, ainda, outra crítica feita a ética kantiana. Sua teoria não seria capaz de fundamentar a diferença que nosso senso moral comum reconhece como agir ético em determinada situação. isto porque é uma ética que trata apenas de deveres negativos. Ou seja, do que não fazer e não de deveres positivos.

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Kant versus Mill

Tal como em Kant, também em Mill, um teórico do utilitarismo, há um princípio básico a partir do qual as nossas ações devem regular-se para terem valor moral. Em Kant, esse princípio era o do cumprimento do dever pelo próprio dever. Já em Mill, esse princípio é o de produzir a máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas.

Em Kant, ainda, averiguar a moralidade das nossas ações era perguntar à razão, respeitando o dever pelo próprio dever:

  • por que agimos de uma determinada forma;
  • com qual intenção fazemos aquilo que fazemos;

Em Mill, todavia, perguntar pelo valor moral da ação é perguntar pelas consequências que resultaram da ação. E esta se daria através de um cálculo intelectivo, que responderia o custo e benefício da ação.

Em relação ao problema das regras morais absolutas, Kant não soube dar uma resposta satisfatória quando confrontado com a situação de ter de mentir para salvar a vida de uma pessoa. A teoria utilitarista diria que nos é permitido mentir desde que essa decisão promova a felicidade sobre o maior número de pessoas possível do que em relação à decisão de não mentir.

Assim, o utilitarista, no presente caso, mentiria. E obedeceria, desse modo, ao princípio da sua teoria que diz: “Deves procurar agir de modo a promover a felicidade sobre o maior número de pessoas.”

Em relação ao problema dos casos de conflito, o utilitarista escolheria aquela que promovesse a máxima felicidade para o maior número possível de pessoas.

Crítica da ética das virtudes às regras morais absolutas

Hoje, a chamada ética das virtudes apresenta-se como um modo de compreender a vida moral. E é uma alternativa tanto ao kantismo quanto ao utilitarismo para compreensão das regras morais.

Os defensores de uma ética das virtudes sustentam que tanto kantismo quanto utilitarismo estão fundados em princípios universais que são formais. Portanto, são vazios de conteúdo moral. Assim o kantiano prega uma moral formalmente rigorosa, mas abstrai-se de promover o bem comum. Já um utilitarista poderia, somente poderia mentir para maximizar o bem estar da maioria.

A ética das virtudes seria, então, como uma saída ao formalismo das éticas citadas. Isto porque considera as circunstâncias particulares dos agentes e a formação de seu caráter através do cultivo de bons hábitos que formarão pessoas virtuosas E neste caso, entende como virtudes aquelas descritas na ética Aristotélica.

Tal análise das circunstâncias particulares aniquila a aplicação de princípios universais de ação. É, portanto, a saída desta teoria a análise de questões morais a partir de uma perspectiva das virtudes. E busca-se, dessa forma, uma compreensão melhor das qualidades morais do individuo. O agir eticamente, então, fluiria de forma natural em cada sujeito. E repercutiria, consequentemente, no coletivo. Reforça-se, contudo, que tal fato se daria através do cultivo de bons hábitos, pela educação e pelo agir racional.

Uma nova visão da moral kantiana em Habermas

Para Habermas, um pensador contemporâneo da linha Kantiana, seria possível pensar o imperativo categórico Kantiano dentro de uma perspectiva intersubjetiva. Se para Kant, as normas morais não estão justificadas, desde sempre, a sua fundamentação derivaria de uma aplicação do imperativo categórico às máximas de ação.

Na ética discursiva, proposta por Habermas, a ideia do rigorismo existente na ética Kantiana seria reconstruída a partir do princípio regulador de uma comunidade de comunicação ideal, implícita na compreensão intersubjetiva de direitos e deveres. Assim o imperativo categórico é reinterpretado em termos processual, dialógico, consensual. Ou seja, de forma comunicativa. O imperativo categórico Kantiano, portanto, se daria em forma discursiva.

O exemplo de que aqui se tratará, será o mesmo tratado ao longo deste trabalho. E o mesmo é também analisado pelo próprio Kant em suas obras. Seria ético, então, mentir para salvar a vida de alguém? A resposta de Kant seria não, pois suas regras morais são absolutas.

Mas Habermas ao analisar as razões pelas quais Kant emite sua resposta, elenca, como uma das razões, o imperativo categórico. A regra de dizer a verdade, então, é contrariada por não dizer a verdade. Afinal, exceções tirariam o caráter universal de suas regras morais. Outro ponto, ainda, seriam as consequências imprevisíveis da ação de mentir no âmbito individual, também ventiladas por Kant em defesa de sua ética.

Assim Habermas, ao analisar o presente caso, considera que muitas consequências são imprevisíveis sob a perspectiva individual. No entanto, poderiam não ser sob uma perspectiva coletiva. No âmbito público discursivo, então, poderiam existir considerações mais amplas acerca das consequências das ações.

Conflitos entre regras morais

Apesar disso, Habermas reconhece que sempre continuariam a existir consequências imprevisíveis. Todavia, estas não seriam tão relevantes no âmbito de uma comunidade discursiva. O que se levaria em conta seriam apenas aquelas consequências previsíveis e consensualizadas no âmbito do discurso.

De tal forma, o exemplo de Kant, sob a perspectiva da ética discursiva, é que ele, na verdade, não avalia o estatuto moral da regra de não mentir e de sua justificação. Analisa, sim, um conflito de regras morais que são justificadas, no que concerne à sua aplicação.

O que está em jogo na verdade, é um conflito entre a regra de não mentir e a regra de salvar a vida de outro. Kant não se preocupa com a necessidade de mentir para salvar uma vida, e sim com a aplicação universal da regra de não mentir no âmbito de avaliação individual do sujeito, mesmo que, para isto, a consequência seja a morte do individuo.

O que faz Habermas é criar uma regra para ser aplicada em cima da outra, no caso de conflito de regras. E essa conclusão se daria através do consenso discursivo no âmbito coletivo. Contudo, sem desconsiderar a contingência do mundo.

Conclusão

O presente trabalho tentou demonstrar, de forma sucinta, que a aplicação das regras morais absolutas, na perspectiva kantiana, é inviável. Para tanto, foram citados, como contra exemplos, o utilitarismo e a ética das virtudes. De igual fora, abordou-se uma nova “roupagem” dada à moral kantiana por Habermas.

Ficou claro que a grande problemática da ética kantiana é a regra que ele atribui à faculdade de julgar do indivíduo. Isto porque desconsidera a complexidade dos atos humanos, bem como sua capacidade e faculdade de julgamento, em determinados casos. E caberia, acerca do tema, inclusive discussão no âmbito da psicanalise. Não é este, todavia, o objeto do presente trabalho.

Sendo, para Kant, a capacidade de julgamento igual para cada indivíduo racional, possui caráter universal. E se mostra, então, altamente formal, na mesma medida de seu rigor. Assim, pode ser considerada como impossível de ser experienciada na perspectiva kantiana em que foi pensada, em função de seu absolutismo e rigorismo intelectivo, que se exigem do individuo racional. E desse modo, ganham reforço as críticas às regras morais absolutas do autor.

Victor Fabiano Pedrosa da Silva Vieira, sócio do escritório JAIR ALVES MARTINS SOCIEDADE DE ADVOGADOS, advogado, especialista em Ciências Penais, Inteligência e Contra Inteligência, Política e Estratégia, e graduado em Filosofia.

Lívia de Paula Alves Martins Vieira, sócia do escritório JAIR ALVES MARTINS SOCIEDADE DE ADVOGADOS.

Referencias Bibliográficas:

  • ANNAS, Julia. Ética das Virtudes (trad. Leonardo Mello). Circulação interna.
  • BRITO, J. H. S. Introdução à fundamentação da metafísica dos costumes de I. Kant. Porto: Contraponto, 1994.
  • KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira segunda Seções. Trad. Guido de Almeida. São Paulo, Barcarolla, Discurso Editorial, 2009.
  • MACINTYRE, A. Depois da virtude. Trad. Jussara Simões. São Paulo, EDUSC, 2001.
  • MILL, J. S. O utilitarismo. Trad. de Alexandre Braga Massela. São Paulo Iluminuras, 2000.
  • MOREIRA, L. Fundamentação do direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
  • RACHELS, J. Os elementos da filosofia moral. Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Editora Gradiva, 2004.
  • TORRES, João Carlos. Manual de Ética. Petropolis, Vozes, 2014.

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