Constituição Federal de 1988 à luz da crítica da razão de Roberto Gomes

23/10/2019
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08/04/2024
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É notória, na Constituição Federal, a ambição de criar um sistema político altamente consensual. Não à toa o texto constitucional preza pelo detalhismo e, dada sua extensão, legisla sobre tudo.

Como se impossível conciliar gregos e troianos, muitos estudiosos do Direito Constitucional – e aqui citamos Oscar Vilhena Vieira no seu A batalha dos poderes – apontam “o conflito entre regras e princípios constitucionais”, que abrem margem a decisões “em zonas de penumbra”.

Consonante a isso, no artigo de hoje buscaremos explicar tal questão relacionando Direito a Literatura. Mais especificamente, analisando as representações que se fazem em torno do Direito e da Justiça na literatura especializada em seus diversos campos de abrangência e realização.

Para tal correlação, partiremos da obra de Roberto Gomes Crítica da Razão Tupiniquim. Com ela, mostraremos que, além do processo constituinte de 1987, que teve como consequência a atual Constituição brasileira de 1988, a razão tupiniquim tem como efeitos argumentos e ideias que, no texto fundamental, dão margem a uma atuação ativista do Judiciário pós-constituinte.

Roberto Gomes e a razão tupiniquim

A importância da Crítica da Razão Tupiniquim é incomensurável para a literatura e para a construção do pensamento filosófico brasileiro. Darcy Ribeiro, em seu também irreverente trabalho Aos Trancos e Barrancos: Como o Brasil Deu no que Deu chega a afirmar que, com o livro de Roberto Gomes, o Brasil afinal voltou a filosofar.

De fato, não exagerava. Em sua obra, Roberto Gomes busca analisar a existência de uma denominada filosofia brasileira. A partir desse suposto, ele desenha como são construídos o pensamento e as teorias neste país e, ainda, tece críticas ácidas aos paradigmas em que eles se dão.

Na base das críticas está o que o autor subsome sob o conceito de “razão tupiniquim”. Tal racionalidade é uma forma de refletir à brasileira. Para Gomes, se baseia em um eruditismo exacerbado, envolto em palavras elegantes e em uma colonização simbólica.

Por isso, essa racionalidade é caracterizada por importações de teorias europeias – que devem ser aplicadas no Brasil até mesmo por serem superiores e por gozarem da prerrogativa de que já deram certo no mundo civilizado europeu.

Tipos de razão tupiniquim

Para analisar o processo constituinte e a Constituição Federal, tomaremos emprestados dois conceitos desenvolvidos por Roberto Gomes. Conforme o próprio, fundamentais, pois ambos permeiam a formação do pensamento brasileiro. O primeiro é a razão eclética, e o segundo a razão ornamental. Então, vamos nos deter rapidamente sobre cada um deles.

1. Razão eclética

Este modelo de razão derivada da corrente filosófica do ecletismo de Victor Cousin. Trata-se de uma forma de fazer com que ideias e estruturas distintas ou, ainda, pertencentes a paradigmas antagônicos consigam entrar em harmonia num movimento de conciliação.

Os grandes problemas da razão eclética nos são apresentados pelo próprio Roberto Gomes (1994, p. 34). Por exemplo, presentes na crença na catarse ou purificação dos melhores elementos de cada sistema ou ainda na fé atribuída a esse tipo de pensamento como tolerante, crítico e até mesmo aberto.

2. Razão ornamental

O segundo conceito desenvolvido por Roberto Gomes é o de razão ornamental. Esta surge, no entanto, após a falha da postura eclética e conciliatória. Assim, a partir desta forma de razão, teremos, em vez da resolução dos problemas, um jeito de suprimi-los.

Isso se faz, evidentemente, de maneira criativa, por meio principalmente de pirotecnia carnavalesca, com teorias e erudição sustentada em um radicalismo teórico, por isso ornamental (1994, p. 52).

A Constituição Federal tupiniquim

Para correlacionar a razão tupiniquim à Constituição Federal, vamos, por meio de métodos jurídico-compreensivos (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 29), decompor o problema. A partir de relações e níveis analisados, buscaremos lançar luz sobre questões controversas e distópicas da constituição de 1988. Para além, mostraremos como o texto constitucional propiciou a ascensão de uma jurisdição constitucional responsável, nesse momento, por tratar de conflitos de relevância não apenas jurídica, mas política.

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Definidos os conceitos de razão eclética e ornamental, a metodologia de pesquisa utilizada e, ainda, a hipótese que pretendemos demonstrar, podemos avançar para a análise da Constituição Federal e da constituinte.

A primeira mostra de uma razão eclética brasileira é que o processo constituinte se deu de forma congressual e sobre as bases e estruturas do regime ditatorial, até mesmo com a presença de parlamentares biônicos – não eleitos por voto popular. Esse exemplo dá luz à definição apresentada por Roberto Gomes à tentativa de conciliar paradigmas antagônicos. Com efeito, a própria ideia de constitucionalismo pressupõe uma mobilização popular com uma profunda ruptura constitucional.

Outro caso de tentativa de conciliação característico do ecletismo é o art. 170 da Constituição Federal. Na tentativa de agradar dois grupos de pressão distintos, passou-se a prever um antagonismo abstrato entre “propriedade privada” e “função social da propriedade” ou ainda entre “livre concorrência” e “defesa do consumidor”. Essa posição pode ser conciliadora, mas resolve o conflito entre dois ideais. Afinal, os partidários de uma ou de outra posição podem alegar uma interpretação constitucional em favor da sua causa. Então, o futuro vira incerteza.

Em ambos os casos, nota-se um dos grandes efeitos do ecletismo: simplesmente passar por alto as oposições e colocá-las lado a lado sem dissolvê-las, fingindo, portanto, que não existem.

Para o ecletismo da Constituição Federal uma resolução ornamental

Entretanto, se os legisladores não tomam posicionamento, alguém terá que tomar. Sobretudo no final do século XX, com o surgimento das teorias do neoconstitucionalismo, o Poder Judiciário passará a ter a competência de dar significado aos termos controversos contidos no texto fundamental. Em suma, terá que dizer a que o constituinte se referiu ao elaborar a Constituição Federal, ou criar novos sentidos.

Assim, o Judiciário, e mais especificamente a jurisdição constitucional, como fundantes de nosso ordenamento jurídico, terão que dar uma resposta às questões mal resolvidas pelo legislativo. Nessa centralidade do Judiciário se insinua, portanto, seu viés político.

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Caso os interesses não possam ser dissolvidos ou mesmo conciliados, resta, por fim, apenas um caminho: a supressão. E essa forma de resolver, sem resolver, sem tomar partido ou declarar posição – até porque assim não se poderia fazê-lo -, se dá pela razão ornamental.

E essa razão ornamental no Poder Judiciário pode se manifestar assim:

  1. pelo deslumbrismo dos colonizados, já que um ornamento importado tem mais valor que o nacional;
  2. pela obscuridade linguística adotada nas decisões judiciais;
  3. pelo modismo doutrinário, que utiliza autores unicamente para dar maior status ao discurso do orador.

Assim, à luz da razão ornamental, a utilização de autores estrangeiros, de termos rebuscados e de refinamento teórico teria o condão de dar um caráter jurídico-filosófico, sem, com isso, expor o caráter propriamente político, da questão discutida na decisão travestida no caso como eminentemente jurídica.

Leia também:

Decisões sobre o texto da constituição federal: entre a resolução e a supressão

Por fim, como efeito da presença dos modelos de razão tupiniquim, presentes desde o processo constituinte, questões mal resolvidas na Constituição Federal têm propiciado maior recurso ao Poder Judiciário no constitucionalismo brasileiro. A consequência disso é o excesso de demandas. Mas não só.

Como vimos, a consequência desse movimento é a pergunta sobre a quem cabe o protagonismo e a legitimidade política nessas soluções.

Além disso, a partir da obra de Roberto Gomes: a forma como as decisões são tomadas, seja no Legislativo, seja no Judiciário, busca resolver ou apenas suprimir os problemas constitucionais?

Referências

  1. GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10ª ed. São Paulo: FTD, 1994.
  2. GUSTIN, Miracy; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
  3. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 2007.

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